Pequenos pormenores

A lei sobre a IVG resultou até de um referendo? Não interessa. Esse referendo foi considerado conforme com a Constituição pelo Tribunal Constitucional? Não interessa. A vontade do grande líder sobrepõe-se a tudo o resto. Tal como Luís XIV, Alberto João pode dizer que o Estado é ele.

A claque do regime pronuncia-se sobre o finca-pé de Alberto João relativamente à aplicação da lei do aborto (nomeadamente ao SNS) na região autónoma da Madeira. Que a lei resultou de um referendo, e que o referendo foi considerado como sendo “constitucional” pelo TC.

Faltaram dois pequenos pormenores.

Que a lei, em concreto, se materializou muito para além do que foi questionado pelo referendo, nomeadamente impondo a disponibilização gratuita da prática do aborto ao SNS (naturalmente com a respectiva despesa), e sendo que desse facto o governo regional não foi tido nem achado, mas se quer que pague a factura; e que a própria lei que foi aprovada no seguimento desse (constitucional) referendo não foi ainda alvo de qualquer avaliação de constitucionalidade. Ou o caro Miguel Abrantes defende que todas as lei feitas na sequência de referendos considerados constitucionais são elas próprias por consequência constitucionais?

Afinal, em que é que a atitude do governo regional impede que o aborto seja realizado sem penalização “se realizad[o], por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”. Onde é que consta da pergunta do referendo que o governo regional é obrigado a disponibilizar esses estabelecimentos, e as condições em que o deve fazer?

29 pensamentos sobre “Pequenos pormenores

  1. João,

    As perguntas que fazes estão, no meu ponto de vista, invertidas.

    Houve um referendo que abria a uma possibilidade bastante ampla de regulamentação. Elaborada essa regulamentação, impõe-se perguntar: ela viola a CRP? Quanto a mim, não. Ela viola os resultados do referendo, não.

    Não viola a CRP porque, avaliada a constitucionalidade da pergunta, se concluiu que o direito à vida poderia ser limitado na sua fase intra-uterina. Não viola os resultados do referendo porque, como bem dizes, esta matéria não foi referendada, estando antes na disposição do poder legislativo.

    Não sendo inconstitucional nem sendo ilegal, por violação do referendo, o que se impõe a AJJ são duas alternativas:
    1) pugnar pela alteração da regulamentação, no sentido da sua moderação e da atenuação do direito social que foi criado e
    2) exigir que a regulamentação da lei possa caber na sua autonomia legislativa, caso em que poderá então regulamentar a lei da forma que entender conveniente, sem nunca proibir ou penalizar uma mulher que pratique IVG em estabelecimento de saúde autorizado.

    AJJ não tem, por isso, que insistir em inconstitucionalidades, mas tão só, embora isso toque na CRP, que exigir uma profunda reforma da autonomia legislativa regional.

    Um abraço,
    a.

  2. João Luís Pinto

    Adolfo,

    Eu não estava a criticar (directamente) o comportamento do AJJ. Estava sim a comentar os argumentos da critica que era apresentada.

    Em relação à questão em concreto, acho que a viabilidade da reacção é muito reduzida (e concordo contigo nesse facto e no que deveria ser mudado), excepto num ponto: se se admitiu que no continente podem existir hospitais que não prestam o serviço, e como tal uma certa “discricionaridade executiva” no processo, porque não admitir que a Madeira não pode exercer também essa capacidade, já que a garantia do SNS é nacional, e não garantida em termos de acessibilidade local?

    Ou seja, será que seria ilegal a perspectiva de somente um hospital a nível nacional proporcionar o serviço?

    Abraço,

    João

  3. Desconheço, ao certo, como funciona a modelação dos serviços de saúde pelo país. Ao admitir-se que no continente possam existir hospitais que não prestam o serviço, penso que tal teve em conta uma eficácia geográfica, assegurando que num raio de X Km, esse serviço é prestado, cobrindo o território nacional através de critérios de racionalidade. Critérios esses, no limite, que poderiam até levar a que na Madeira nenhum hospital estivesse destacado para o efeito.

    No entanto, não é isso que AJJ parece pretender. De qualquer forma, ainda que fosse isso que AJJ pretendesse, sempre haveria que saber se o sistema de saúde, na Madeira, não é tratado de forma separada do restante para efeitos de distribuição de especialidades, caso em que se criaria obrigatoriedade de prestação do serviço ou se, mais provável, tal distribuição não é tarefa do Estado Central, subtraída à autonomia regional, caso em que é o Estado Central a ter a última palavra.

    Coisa diferente é saber se AJJ não deveria ter, afinal, autonomia para regulamentar as leis da república. Penso que faz sentido que assim seja, havendo naturalmente que alterar-se todo o sistema em que assenta a autonomia regional. Até lá, AJJ não tem razão, do meu ponto de vista.

  4. JoaoMirand

    ««Não viola a CRP porque, avaliada a constitucionalidade da pergunta, se concluiu que o direito à vida poderia ser limitado na sua fase intra-uterina.»»

    Do facto de se ter consluido que a vida pode ser limitada na sua fase intra-uterina não se pode concluir que esta lei específica é constitucional. Não se pode concluir, por exemplo, que o Estado tem o direito de atentar contra essa vida nos hospitais públicos.
    São questões diferentes:

    Questão 1: pode-se limitar o direito à vida na fase intra-uterina em todos os casos

    Questão 2: pode-se limitar o direito à vida na fase intra-uterina em alguns casos

    Questão 3: o Estado pode activamente atentar contra a vida na fase intra-uterina

    Até agora o TC só se pronunciou sobre a questão 2.

  5. João Mirand,

    Da apreciação do TC pode concluir-se que o Estado pode legislar no sentido de despenalizar a IVG, quando realizada em estabelecimento de saúde autorizado, por vontade da mulher, até às 10 semanas. Foi isto que foi referendado. A regulamentação ou cumpre isto, ou não cumpre.

    Cumprindo isto – foi o que quis dizer, ela é constitucional, no que ao direito à vida diz respeito. Pois que o que trata a lei da IVG é dos termos em que a mulher a pode realizar, naquelas condições. Penso eu que, nesta matéria ela é constitucional. Respeita a CRP no que ao direito à vida diz respeito porque, nessa matéria, não vai além do que foi perguntado. Não criou mais condições nem alargou os prazos, por exemplo.

    E a regulamentação da lei pode ser inconstitucional a vários outros títulos, que nada têm que ver com o referendo. Por exemplo, violação de autonomia regional, se se considerasse, na CRP, que esta matéria cabia na autonoma regional e a lei impunha ilegitiamente às regiões que a adoptassem.

    Não me parece que seja isto que vem sendo apontado por AJJ. Nem sequer vejo para que relevam as questões 1 e 3 para o caso concreto. Pois que a regulamentação da lei não parece ir no sentido apontado em nenhuma das questões. Mas posso estar a ver mal a coisa, pelo que espero pelas tuas apreciações, que são sempre oportunas.

    Um abraço

  6. JoaoMiranda

    ««Nem sequer vejo para que relevam as questões 1 e 3 para o caso concreto. Pois que a regulamentação da lei não parece ir no sentido apontado em nenhuma das questões.»»

    A regulamentação da lei subsidia o aborto e coloca-o no serviço nacional de saúde a ser praticado por agentes do Estado. O que até ao momento o TC considerou (implicitamente) é que o direito à vida não implica a penalização do aborto. O RC nunca disse que o Estado pode contribuir activamente para a prática de abortos. Uma coisa é o Estado abdicar de proteger a vida por via penal, outra é ser o próprio Estado a atentar contra a vida nos seus próprios tribunais.

  7. JoaoMiranda

    Aliás, até ao momento o TC nunca disse que o Estado não é obrigado a proteger a vida intra-uterina. O que disse é que não é obrigado a protegê-la por via penal.

  8. João,

    A integração da IVG no SNS é, de alguma forma inconstitucional, no actual contexto da CRP?

    Por muito que me custe, penso que ela não é inconstitucional, antes se insere no contexto que temos, em que grande parte das intervenções médicas se fazem no âmbito do SNS(o que levaria, isso sim, neste perverso contexto, a contestar a constitucionalidade das exclusões existentes).

    Nesye contexto, o Estado objectivamente não procura incitar ou contribuir activamente para a prática de nada, antes garantir que quem precise, o possa fazer pelo menor custo. Ainda que o efeito da norma seja esse, estou 100% de acordo, não penso que o objecto de apreciação do TC pudesse recair sobre os efeitos da lei nesses termos que sugeres, mas tão só sobre se a prática de IVG no SNS afronta ou não o direito à vida.

    Por outro lado, penso que o resultado do referendo permite claramente a prática de IVG em estabalecimento autorizado. Não sei, por isso, porque o estabelecimentos do Estado têm que ser impedidos de o fazer, sob pena de inconstitucionalidade, e os privados não. Coisa diferente é se a lei impedir a actividade privada, claro.

  9. JoaoMirand

    ««A integração da IVG no SNS é, de alguma forma inconstitucional, no actual contexto da CRP?

    Por muito que me custe, penso que ela não é inconstitucional, antes se insere no contexto que temos, em que grande parte das intervenções médicas se fazem no âmbito do SNS»»

    O objectivo do SNS é suposto ser salvar vidas e não destruí-las. Como tentei explicar nos posts anteriores, a Contituição protege a vida humana. As decisões até ao momento do TC apenas disseram que o Estado não é obrigado a proteger a vida humana via código penal. Não podem ser usadas para legitimar a destruição da vida humana pelo SNS.

    ««Nesye contexto, o Estado objectivamente não procura incitar ou contribuir activamente para a prática de nada, antes garantir que quem precise, o possa fazer pelo menor custo. »»

    O facto de ser praticado no SNS não é por si só um contributo do Estado para a destruição da vida humana?

    ««Ainda que o efeito da norma seja esse, estou 100% de acordo, não penso que o objecto de apreciação do TC pudesse recair sobre os efeitos da lei nesses termos que sugeres, mas tão só sobre se a prática de IVG no SNS afronta ou não o direito à vida.»»

    Não percebi. O que eu sugiro é que o TC tem que avaliar se o facto de o aborto estar no SNS viola ou não o direito à vida.

    ««Por outro lado, penso que o resultado do referendo permite claramente a prática de IVG em estabalecimento autorizado.»»

    O resultado do referendo despenaliza o aborto em estabelecimento autorizado. Não diz nada sob as condições em que a autorização pode ser concedida. No limite, o referendo é compatível com a despenalização do aborto em estabelecimentos autorizados e com a proibição de estabelecimentos autorizados.

    «« Não sei, por isso, porque o estabelecimentos do Estado têm que ser impedidos de o fazer, sob pena de inconstitucionalidade, e os privados não. »»

    O Estado tem obrigações que os privados não têm. Para começar, o Estado tem a obrigação constitucional de proteger activamente a vida e os privados não. Logo, podem existir situações em que os privados podem promover o aborto e o Estado não.

  10. JoaoMirand

    A Contituição diz qualquer coisa como “a vida humana é inviolável”. Considere-se 2 interpretações:

    1. O Estado é obrigado a perseguir quem quem viola a vida humana;

    2. O Estado não pode contribuir para a violação da vida humana.

    Até agora o TC disse que a interpretação 1 está errada. Nunca disse que a interpretação 2 está errada. Por outro lado a interpretação 2 proíbe o aborto no SNS e permite-o no privado.

  11. Aqui vão algumas ideias, João.

    “As decisões até ao momento do TC apenas disseram que o Estado não é obrigado a proteger a vida humana via código penal.”

    O TC disse algo mais. Disse que é constitucional que existam estabelecimentos de saúde autorizados a praticar a IVG. Nesse momento, admitiu várias coisas, entre elas (i) que o valor da vida intra-uterina é relativo, (ii) que estabelecimentos autorizados podem terminar essa vida, antes de 10 semanas, e a pedido da mãe e (iii) que a IVG não põe em causa a inviolabilidade da vida humana.

    “O facto de ser praticado no SNS não é por si só um contributo do Estado para a destruição da vida humana?”

    Consticionalmente, aos olhos do TC, não. Porque o TC considerou que a inviolabilidade da vida humana não era posta em causa, em termos constitucionais, pela prática da IVG em determinas circunstâncias. Se acaso considerasse, não poderia ter dito que a IVG referendada se acomodava às exigências constitucionais.

    “No limite, o referendo é compatível com a despenalização do aborto em estabelecimentos autorizados e com a proibição de estabelecimentos autorizados”.

    Não concordo. Se assim fosse, a pergunta teria sido outra. Qualquer coisa como “concorda que existam estabelecimentos autorizados a praticar a IVG”? A pergunta feita, e a interpretação que dela fez o TC para efeitos de avaliação da mesma, pressupõem a existência de tais estabalecimentos.

    “O Estado tem obrigações que os privados não têm. Para começar, o Estado tem a obrigação constitucional de proteger activamente a vida e os privados não”.

    Ou a vida é um valor inviolável de tal sorte que impede a prática de IVG, ou não é. Se não é, em termos constitucionais, nada impede que o Estado opte, também, por prestar tal serviço. Se isso é justo, leal ou transparente, é outra conversa.

    “Até agora o TC disse que a interpretação 1 está errada. Nunca disse que a interpretação 2 está errada.”

    O TC diz que a inviolabilidade da vida humana não é posta em causa pela prática de IVG, por vontade da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado. Se fosse, não autorizava a pergunta do referendo. Assim, constitucionalmente, à luz do TC, a realização de IVG no SNS não coloca em causa o direito à vida.

    Um abraço,
    a.

  12. JoaoMirand

    ««O TC disse algo mais. Disse que é constitucional que existam estabelecimentos de saúde autorizados a praticar a IVG. Nesse momento, admitiu várias coisas, entre elas (i) que o valor da vida intra-uterina é relativo, (ii) que estabelecimentos autorizados podem terminar essa vida, antes de 10 semanas, e a pedido da mãe e (iii) que a IVG não põe em causa a inviolabilidade da vida humana.»»

    Pois. Mas o que é importante é o que o TC não disse.

    O TC não disse:

    1. é constitucional que existam estabelecimentos de saúde autorizados a praticar a IVG em todos os casos. Disse apenas que há casos em que pode ser;

    2. que o valor da vida intra-uterina é menor que o direito da mulher a abortar quando o quer fazer;

    3. que o Estado não tem obrigação de condicionar a abertura que estabelecimentos autorizados de forma a minimizar o a violação da vida do feto. Uma coisa é a existência de estabelecimentos ser constitucional, outra bem diferente é ser constitucional sem restrições.

    Para além disso o TC nunca disse que que a IVG não põe em causa a inviolabilidade da vida humana. O que disse foi que:

    a) pode haver casos em que a preservação da vida humana não requer a penalização da IVG;

    b) pode haver casos em que a IVG é o mal menor (casos já inscritos na lei antiga)

    Em nenhum momento o TC disse que a IVG não é um mal a evitar. Em nenhum momento o TC isentou o Estado da obrigação de proteger a vida intra-uterina contra a IVG. Não se confunda a consideração de que a penalização da IVG é desnecessária para a protecção da vida humana com a condisideração que o TC nunca fez de que o Estado não tem obrigação de minimizar os danos causados pela IVG na vida intra-uterina.

  13. JoaoMirand

    ««Consticionalmente, aos olhos do TC, não. Porque o TC considerou que a inviolabilidade da vida humana não era posta em causa, em termos constitucionais, pela prática da IVG em determinas circunstâncias.»»

    Nope. O TC nunca disse isso. O que o TC disse foi que a inviolabilidade da vida humana não obriga o Estado a usar o direito penal para proteger a vida humana.

    ««Se acaso considerasse, não poderia ter dito que a IVG referendada se acomodava às exigências constitucionais.»»

    Claro que podia. A pergunta não dizia que o aborto devia ser considerado um bem ou que devia deixar de ser combatido. Dizia apenas que devia deixar de ser penalizado. E também não dizia que o aborto devia ser promovido.

    O TC pode considerar que:

    1. O Estado não precisa de penalizar o aborto (foi o que disse até ao momento porque é o ponto necessário para aprovar a pergunta)

    2. o Estado não deve contribuir com meios para a prática do aborto (não disse isto nem o seu contrário, mas também não precsou de se pronunciar para aprovar a pergunta)

    3. o Estado deve combater o aborto por meios não penais (não disse isto nem o seu contrário, mas também não precsou de se pronunciar para aprovar a pergunta)

  14. JoaoMirand

    ««Ou a vida é um valor inviolável de tal sorte que impede a prática de IVG, ou não é.»»

    Como é evidente não é assim. Até porque a questão não se coloca entre impedir a prática e não a impedir. “impedir” é um objectivo e os resultados das tentativas de “impedir” são incertos. A questão coloca-se ao nível dos meios que o Estado está obrigado a usar para tentar impedir. O facto de a vida humana ser inviolável não obriga o Estado a usar meios penais (até porque esses podem não ser os mais eficazes).

    «« Se não é, em termos constitucionais, nada impede que o Estado opte, também, por prestar tal serviço.»»

    Lá está. O que é relevante não é se a vida humana é inviolável mas a forma como o Estado está obrigado a combater essa inviolabilidade. O facto de o Estado não estar obrigado a usar meios penais não implica que não tenha que combater o aborto por outros meios nem implica que o possa praticar no SNS.

  15. JoaoMirand

    ««O TC diz que a inviolabilidade da vida humana não é posta em causa pela prática de IVG, por vontade da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado. »»

    O TC não diz isso. O que diz é que a penalização do aborto não é necessariamente a melhor forma de evitar a violação da vida humana. Ou seja, o TC reconhece que existem outros meios para evitar a violação da vida humana. Não reconhece que é legítimo que ela seja violada.

  16. “O TC não disse: 1. é constitucional que existam estabelecimentos de saúde autorizados a praticar a IVG em todos os casos. Disse apenas que há casos em que pode ser”.

    Claro. Os casos que sejam abrangidos pela pergunta. Certo é que o TC considera que a pergunta referenda pressupõe a existência de estabelecimentos autorizados a realizar a IVG, que só existirão na hipótese de resposta positiva à própria pergunta.
    “2. que o valor da vida intra-uterina é menor que o direito da mulher a abortar quando o quer fazer”

    Nunca disse isso. O TC considera que, atento o prazo de 10 semanas em causa, se impõe uma atenção especial à vontade da mulher. Acaso não existisse esta ponderação da vontade da mulher, negando a relevância da ponderação de
    valores, equivaler-se-ia a IVG ao crime de
    homicídio.

    “3. que o Estado não tem obrigação de condicionar a abertura que estabelecimentos autorizados de forma a minimizar o a violação da vida do feto. Uma coisa é a existência de estabelecimentos ser constitucional, outra bem diferente é ser constitucional sem restrições.”

    Mas também não disse que tinha essa obrigação. O que o TC alertou foi para a necessidade de garantir a formação da vontade da mulher de forma esclarecida. Mas se bem me recordo, AJJ opôs-se a esta regulementação porque o resultado do referendo não era vinculativo, depois porque o resultado do referendo colidia com o direito à vida e finalmente pela falta de condições financeiras para lhe dar seguimento. Nunca utilizou este argumento, que eu conheça.

    “Para além disso o TC nunca disse que que a IVG não põe em causa a inviolabilidade da vida humana.”

    O que eu disse foi que o TC considerou que a inviolabilidade da vida humana não era posta em causa pela prática de IVG, por vontade da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado.

    “Em nenhum momento o TC disse que a IVG não é um mal a evitar.”

    Nem tinha de dizer. O TC não tem que pronunciar sobre o mal ou o bem. Tem apenas que dizer se determina lei se compadece com a CRP ou não. Seja a CRP fonte de soluções que espalhem o mal ou espalhem o bem.

    “Em nenhum momento o TC isentou o Estado da obrigação de proteger a vida intra-uterina contra a IVG. Não se confunda a consideração de que a penalização da IVG é desnecessária para a protecção da vida humana com a condisideração que o TC nunca fez de que o Estado não tem obrigação de minimizar os danos causados pela IVG na vida intra-uterina.”

    Não confundo, de forma alguma. Mas o TC não tem que isentar o Estado de nada. Ou está na CRP ou não está. E O TC considerou que a IVG, realizada nos termos constantes da pergunta, era compatível com a CRP, numa perspectiva de ponderação sobre
    um conflito de direitos e valores.

  17. JoaoMirand

    ««O que eu disse foi que o TC considerou que a inviolabilidade da vida humana não era posta em causa pela prática de IVG, por vontade da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado.»»

    Leu o acordão?

  18. JoaoMirand

    Indique-me no acórdão do TC onde é que é dito que a inviolabilidade da vida humana não é posta em causa pela prática de IVG, por vontade da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado.

  19. “o que o TC disse foi que a inviolabilidade da vida humana não obriga o Estado a usar o direito penal para proteger a vida humana”.

    Pelo que daqui se retira que a IVG, nos termos da pergunta, que pressupõe a criação de estabelecimentos autorizados, não colide, constitucionalmente, com o direito à vida. Nos termos da pergunta e apenas nestes. Não que os outros sejam inconstitucionais, mas sobre eles o TC não se pronunciou.

    “A pergunta não dizia que o aborto devia ser considerado um bem ou que devia deixar de ser combatido. Dizia apenas que devia deixar de ser penalizado. E também não dizia que o aborto devia ser promovido.”

    Não dizia nem tinha que dizer. A pergunta pressupunha a possibilidade de realização de IVG em estabelecimentos de saúde a autorizar. Boa ou má, o TC considerou que a IVG se realizada nesses estabelecimentos, até às 10 semanas, não poderia penalizada. E reconheceu que a autorização de funcionamento desses estabelecimentos não colidia com a CRP.

    “O TC pode considerar que:(…)
    2. o Estado não deve contribuir com meios para a prática do aborto (não disse isto nem o seu contrário, mas também não precsou de se pronunciar para aprovar a pergunta)”

    O que o TC considerou foi que através da pergunta em questão se assegurava, precisamente, que não estava em causa uma iberalização da IVG, realizada sem condições, sem
    protecção da saúde da grávida, isto é, o aborto clandestino, invectivando a uma regulamentação exigente quanto às condições de saúde inerentes à realização da IVG.

    “O TC pode considerar que:(…)
    3. o Estado deve combater o aborto por meios não penais (não disse isto nem o seu contrário, mas também não precsou de se pronunciar para aprovar a pergunta)”

    O que o TC disse é que a despenalização nos termos referendados se compatibiliza com uma protecção da vida intra-uterina. Despenalização que pressupõe, recordo, a autorização para a laboração de estabelecimentos de saúde.

  20. João,

    Quando digo que o TC considerou que a inviolabilidade da vida humana não era posta em causa pela prática de IVG, por vontade da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado quero dizer que o TC considerou que o artigo 24.º, que consagra a inviolabilidade da vida humana, não era posto em causa pela IVG nos termos da pergunta.

  21. JoaoMirand

    ««Pelo que daqui se retira que a IVG, nos termos da pergunta, que pressupõe a criação de estabelecimentos autorizados, não colide, constitucionalmente, com o direito à vida. Nos termos da pergunta e apenas nestes.»»

    Os termos da pergunta são gerais. O TC considerou que a pergunta é contitucional porque nesses termos gerais poder ser colocada porque tais termos não impedem um regulamentação restritiva. Dado que o TC nunca se pronunciou sobre que nível de restrição é necessário, permanecem duas questões em aberto:

    1. Pode haver aborto sem que o Estado imponha um mecanismo que o dificulte?

    2. Pode o Estado subsidiar o aborto ou deve o a mulher ser obrigada a pagar os custos?

    Nenhuma destas questoes foi até ao momento respondida pelo TC.

  22. “A questão coloca-se ao nível dos meios que o Estado está obrigado a usar para tentar impedir. O facto de a vida humana ser inviolável não obriga o Estado a usar meios penais (até porque esses podem não ser os mais eficazes).”

    Concordaria inteiramente se a pergunta não tivesse como pressuposto a criação/existência de um acto de autorização para o funcionamento de estalecimentos de saúde para o efeito da IVG, conceito que implica, no nosso ordenamento administrativo, o Estado.

    “O facto de o Estado não estar obrigado a usar meios penais não implica que não tenha que combater o aborto por outros meios nem implica que o possa praticar no SNS.”

    Plenamente de acordo. Pela pergunta, o Estado está obrigado, para regulamentar a lei, a estabelecer critérios de funcionamento de estabelecimentos de saúde, a quem confere autorização.

    A questão que se coloca é a de se será inconstitucional se o Estado prestar, ele próprio, tais serviços.

  23. JoaoMirand

    ««Quando digo que o TC considerou que a inviolabilidade da vida humana não era posta em causa pela prática de IVG, por vontade da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado quero dizer que o TC considerou que o artigo 24.º, que consagra a inviolabilidade da vida humana, não era posto em causa pela IVG nos termos da pergunta.»»

    Não é a mesma coisa. O TC considerou que:

    1. o artigo 24.º, que consagra a inviolabilidade da vida humana, não era posto em causa pela IVG nos termos da pergunta

    sem ter necessidade de considerar que:

    2. que a inviolabilidade da vida humana não era posta em causa pela prática de IVG, por vontade da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado

    E há duas razões para o TC poder aceitar 1 sem necessariamente aceitar 2:

    a) 1 pode ser visto como um mal menor sendo o Estado obrigado a minorar os seus riscos caso a resposta ao referendo fosse SIM. Ou seja, a IVG por vontade da mulher etc etc poder violar o artigo 24 mas mesmo assim considerar-se que existem bens mais importantes.

    b) o que foi referendado não foi a IVG por vontade da mulher até às 10 semanas em estabelcimento autorizado mas sim a respectiva despenalização. O TC considerou que a despenalização por si só não viola o artigo 24, desde que se aplique a) ou desde que o Estado tome outras medidas para combater o aborto.

    O ponto é que o TC nunca disse exactamente em que condições é que a o aborto viola o artigo 24. O que disse é que existe um conjunto de leis possíveis que não violam o artigo 24 que são compatíveis com a pergunta. Mas nunca disse que todas as leis que permitem a IVG por vontade da mulher até às 10 semanas em estabelcimento autorizado são compatíveis com o artigo 24.

  24. “O TC não diz isso. O que diz é que a penalização do aborto não é necessariamente a melhor forma de evitar a violação da vida humana. Ou seja, o TC reconhece que existem outros meios para evitar a violação da vida humana. Não reconhece que é legítimo que ela seja violada.”

    O TC diz que a inviolabilidade da vida humana não é posta em causa pela despenalização nos termos da pergunta: “a presente
    pergunta não pressupõe o abandono da protecção jurídica da vida intra-uterina e se coloca no plano de uma ponderação de valores e mesmo de uma harmonização,concordância prática, coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito, de
    forma a evitar o sacrifício total de uns em relação a outros. Apenas se terá de concluir que à liberdade de manter um projecto de vida é dada uma superior valoração, nesta
    primeira fase, para efeitos de não-punição, sem que isso queira e possa implicar “abandono jurídico” da vida intra-uterina.”

  25. “O ponto é que o TC nunca disse exactamente em que condições é que a o aborto viola o artigo 24. O que disse é que existe um conjunto de leis possíveis que não violam o artigo 24 que são compatíveis com a pergunta. Mas nunca disse que todas as leis que permitem a IVG por vontade da mulher até às 10 semanas em estabelcimento autorizado são compatíveis com o artigo 24.”

    Concordo inteiramente. No entanto, as objecções levantadas por AJJ têm ido no sentido de atacar os próprios pressupostos da pergunta: a própria IVG.

    Quando acima perguntei em que é que a regulamentação proposta poderia ser inconstitucional, o João respondeu que a Lei subsidia o aborto e coloca-o no serviço nacional de saúde a ser praticado por agentes do Estado. E não considero que esta regulamentação, por esses aspectos, possa ser inconstitucional.

  26. 1. Pode haver aborto sem que o Estado imponha um mecanismo que o dificulte?

    O TC em parte responde, porque obriga a uma autorização estadual de funcionamento dos estabelecimentos de saúde, referindo a necessidade de proteger a saúde da grávida. Ai impôr níveis de exigência, o Estado restringe a prática de IVG.

    2. Pode o Estado subsidiar o aborto ou deve o a mulher ser obrigada a pagar os custos?

    A esta pergunta, eu gostaria de responder não, o Estado não pode subsidiar o aborto. Mas, infelizmente, não penso que isso seja inconstitucional, atento o contexto do SNS e de esta ser considerado uma questão de saúde, pelo próprio TC e pela pergunta (que fala em estabelecimentos de saúde e não em outros).

  27. JoaoMirand

    ««Quando acima perguntei em que é que a regulamentação proposta poderia ser inconstitucional, o João respondeu que a Lei subsidia o aborto e coloca-o no serviço nacional de saúde a ser praticado por agentes do Estado. E não considero que esta regulamentação, por esses aspectos, possa ser inconstitucional.»»

    Mas é óbvio que pode. Um dos argumentos que o TC usou para aprovar a pergunta foi a possibilidade de o Estado poder combater o aborto por meios que não os penais. Ou seja, o TC abriu a possibilidade de o aborto ser inconstitucional se o Estado não usar outros meios para o combater. Os meios possíveis que não a lei penal são as restrições económicas. O TC tem neste momento toda a liberdade para vir a decidir no futuro que os subsídios ao aborto violam o artigo 24 porque inviabilizam formas de combater o aborto não penais.

    Se o Estado não usa a lei penal, se não usa penalizações económicas, se ainda por cima subsidia o aborto será muito dificil ao TC argumentar que a vida intra-uterina está a ser protegida.

  28. “Se o Estado não usa a lei penal, se não usa penalizações económicas, se ainda por cima subsidia o aborto será muito dificil ao TC argumentar que a vida intra-uterina está a ser protegida”

    Percebo o ponto, mas nenhum dos exemplos dados pelo TC para demonstrar a protecção da maternidade, sai beliscada com a actual regulamentação. E mais especificamente quanto à regulamentação da lei, as sugestões (se é que assim poderemos chamar) não tocam na integração do SNS.

    Volto pois ao que disse acima. Por muito que me custe, penso que a regulamentação não é inconstitucional, aos olhos deste TC, claro está.

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