Danos Colaterais

“Na lógica do engenheiro social, não há relação causal entre eventos tão díspares como (1) a criação de uma burocracia de assistência social e (2) a redução (após a passagem de alguns anos) na probabilidade de alguém, perante a morte do vizinho, ir cozinhar uma caçarola para o jantar da família enlutada. Na lógica que eu uso, essa causalidade existe e tem grande importância.

O meu argumento parte de duas premissas. Uma vem directamente de Aristóteles; a prática da virtude tem as características de um hábito e de uma arte. As pessoas podem nascer com a capacidade de serem generosas, mas só se tornam generosas pela prática da generosidade. As pessoas têm a capacidade de ser honestas, mas tornam-se tal apenas pela prática da honestidade. A segunda, para a qual não tenho uma fonte específica, é a resposta humana a que me referi várias vezes: As pessoas tendem a não fazer uma tarefa quando outrém a faz por elas. No nível micro, o diálogo entre o governo e o cidadão é parecido com algo como:

– Queres sair para alimentar quem tem fome ou vais ficar aí em casa a ver televisão?

– Estou cansado. O que é que vai acontecer se eu não fôr?

– Bem, nesse caso acho que tenho de ir eu.

– Se é assim, então vai tu.” – Charles Murray (tradução minha)

Uma suspeita que sempre tive é a de que a existência de programas públicos de assistência social, financiados via impostos, contribui para uma diminuição da generosidade privada. No fundo, que a beneficência coerciva acaba por asfixiar a genuína. As razões lógicas que levantam esta suspeita são fáceis de entender: diminuição do rendimento líquido disponível, ou repúdio pela ideia de que o apoio social é um “direito”, com o consequente “dever” dos outros.

Em 1988, no seu livro In Pursuit: Of happiness and Good Government, Charles Murray analisa a questão estatísticamente e mostra existir uma contracção significativa da beneficência privada quando existe uma política oficial de aumento dos apoios sociais estatais. Nos dez anos anteriores à eleição de John F. Kennedy, durante os quais esses apoios baixaram, a filantropia privada aumentou de 2% do rendimento disponível até cerca de 2,7%. Dessa altura até 1980 (quando Ronald Reagan foi eleito), baixou até 2,1% (apenas com uma ligeira estagnação durante os anos Nixon-Ford). Foram os anos de maior expansão dos programas sociais norte-americanos. Daí até a 1986, antes da edição do livro, voltou a subir, chegando a cerca de 2,5%.

4 pensamentos sobre “Danos Colaterais

  1. Existem mais factores para além da estrita aritmética na relação entre cidadãos “dadores” e “receptores”. Por um lado, há a questão da eficiência. O que é retirado por impostos, além de pagar os apoios, financia também a burocracia central. Adicionalmente, há a questão da proximidade. A filantropia local está mais próxima dos problemas, tem um melhor entendimento deles e por isso permite direccionar recursos para onde eles são mais necessários.

    Por outro lado há o “moral hazard”. O estado não pode discriminar entre cidadãos. Por isso os apoios estatais são necessariamente cegos e revestem-se de um carácter de “entitlement”. Os apoios privados podem identificar mais facilmente quem realmente está em dificuldades de quem é indigente, e têm toda a legitimidade para recusar apoio aos últimos (ou a encorajá-los activamente a mudar de atitude). O estado não só tem dificuldade nesta identificação, como não pode legitimamente recusar apoio (pelo menos no plano formal, não discriminatório). É desmoralizador para quem está a passar dificuldades e a fazer um esforço real para sair da situação olhar para o lado e ver abusos do sistema de apoio.

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